Geografia imaginária das rotas do íntimo - Carlos Henrique Filgueiras

“Illustration de hypothèse des plagues tournantes en psychogéographique”, Guy Debord, 1957




Geografia imaginária das rotas do íntimo

houve um tempo em que eu estava quebrado /os fios de cabelo desgrenhados se misturavam à consciência partida: eram fios diferentes, mas formavam um mesmo redemoinho que te fazia pensar, temer e agir em consonância com o que de pior existe em tia expressão de descrença no espelho virava o cenho franzido contra o ônibus em movimento, contra o mundo em inérciameus lábios secos que nunca conheceram desertos desaprenderam a rir sem aquele sorriso fingido de quem odeia estara bigorna que vive nas esquinas das avenidas da garganta me pesava maiso peito era deserto e oceano, era luz e sombra, era tudo que você tentava responder em linhas que não te diziam as coisas que você precisava ouvir pra mudara barriga de cerveja empurrando o mundo com sua preguiça de amansar terças em domingos, os joelhos fracos, os calcanhares comidos pelo tempo. os pés, cansados e descalços, contra o chão que não se queria caminhar.

teve um tempo em que eu fiz coisas que mudaram quem eu soucoisas boas, às vezes, que me fizeram acreditar que meu amor era meu e não algo que eu me forcei a tercoisas ruins, em muitas outras vezes, que me fizeram olhar pra mim em noites insones e me perguntar o que seria, o que eu faria, e revisar porques, e tentar inventar desculpas, justificativas, culpados, até desistir de tudo e com todas as peças no chão lentamente escrever novamente que a culpa era (é) minha e que a mudança um dia viria.

mas ela nunca vemo tempo é um quadro que eu refaço buscando um tom que nunca conhecitudo que eu perdi na vida em busca dele parece infinitamente caroe se houve um tempo em que eu sentia que era o rei do mundo agora eu sou apenas servo do que posso manter por pertoe se houve um tempo em que eu sentia que não errava, agora eu sou só o erro-em-redenção andando com uma angústia natimorta pelas ruas sonâmbulas e trôpegas de uma cidade que só acordou pra mim depois que eu pensei que morreria pra ela.

ela parece vir, às vezesela é a fome de ser que não cessa nuncaela é tudo que floresceu pelo meu passo errático que sempre chama chuva e linhas trêmulasela é aquele vazio que parece profundo quando se olha de longe, sem pôr os pés pra sentir até onde a água bateela é uma série de mudanças sutis no jeito de existiraté que pareça existir vida depois das promessas de fim de ser que me mastigam de dentro pra fora.

na extremidade do tempo me encontro ansioso por um passado que amarra meu presente a um futuro que eu não conheço nem esperoo precipício da dúvida esconde seu fundo na neblina das certezas que tenho e me deixa aberta a opção de saltar ou de apenas esperar que o vento me faça cairsem vícios nem medos eu tateio o escuro procurando qual corda do meu peito fez o som que ouvi uma vezaquela que me fez pensar sobre santos, cachorros de rua, cidades condenadas ou abençoadas e destinos iguais a elassó os deuses se banham sempre do amanhecere só as ruas vazias sentem de verdade o pôr-do-sol, com os homens e os cães numa cumplicidade muda, revirando lixeiras e procurando segundos melhores pra deixar de viver do susto de si mesmo e do medo do outro

enquanto penso sobre o mundo sem mim, sobre a sinfonia sem bach, sobre a ária na quarta corda que eu aprendi a tocar e perdi,procuro o motivo da minha tosse infinda além do cigarro amarelando o horizonte e da asma que a criança que eu fui se acostumou a ter vendo a amazônia da janela do quartoprocuro o motivo da minha sede infinita de entender as coisas e o porquê dela se perder sempre no medo, no limiar entre ele e a liberdade, ou no precipício que demanda tudo que suplanta o que há de normal: existe essa coisa em mim que me diz que quando eu saltar eu nunca mais vou voltar, e quando eu olho pras minhas mãos, penso que não consigo, mas que devo. e que, sem voltar, sozinho e cansado, talvez eu entenda que não era tão grande assim, que eu nunca movi montanhas fora de mim, e que aquele som que eu ouvi uma vez quem sabe se pareça bastante com todos os mitos que eu criei pra explicar neuroses sem nome, e seja só mais um deles: o mito de grandeza de quem sonha com o mesmo sol que os deuses que morreram sem adoradores, bíblias ou crenças em pedra manchada a sangue.

tenho coragem o suficiente pra aguentar quantas quedas e infernos forem, descalço, cansado ou tristemas não sei se consigo me sentindo uma farsa e sem saber se toda felicidade e virtude em mim é de fato estrangeiramas isso não é sobre mim: é sobre como é triste ter que viver a vida toda pra só entender como é que se faz isso quando não há mais tempoé sobre esse sol, eterno e finito, é sobre essa dúvida que todo escritor, farsa ou não, tem: como se mensura a angústia do mundo se não se consegue esticar a corda nem até o fim da própria?

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